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William Douglas: O dilema da vacinação privada contra a Covid

01 de maio de 2021 - 20:39

Cada pessoa que recebe a imunização é uma a menos para ser infectada e eventual transmissora dessa terrível doença

POR O DIA

Um conhecido ditado diz que tempos excepcionais exigem medidas excepcionais. É o caso da pandemia que assola o mundo há mais de um ano, ceifando vidas e causando grave desequilíbrio econômico. A necessidade de vacinar um enorme contingente de brasileiros demanda a adoção, pelo Poder Público, de medidas até então inéditas para criar opções, ampliar o acesso à imunização e restabelecer a normalidade no país. É salutar e digna de veemente aplauso, portanto, a iniciativa dos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, na aprovação da Lei 14.125/2021, que autoriza a iniciativa privada a participar imediatamente do processo de imunização da população brasileira contra a Covid-19.

A nova norma traz grande e inegável avanço legislativo ao país em prol do combate à pandemia. Em paralelo, grandes nomes do empresariado brasileiro e da sociedade civil lideraram a colheita de mais de 300 mil assinaturas pedindo que seja permitido à iniciativa privada fazer um trabalho de vacinação solidário, não voltado ao lucro. Entre os avanços da lei está a padronização dos procedimentos e a contribuição para a consecução dos objetivos da República previstos no artigo 3º da Constituição, como o desenvolvimento nacional, a solidariedade e a promoção do bem de todos. Não esqueçamos que a vacinação privada já é uma realidade para prevenir outras enfermidades, sendo regularmente aplicada em clínicas particulares e a iniciativa privada já tem experiência e agilidade para tal aplicação, como é o caso da vacina contra a gripe, e que tais atividades nunca foram questionadas.

Não se trata de retirar responsabilidade do Estado, mas de justamente acelerar o ritmo do procedimento de vacinação, reduzindo assim a demanda e o volume de filas que hoje vemos sobre o SUS, uma vez que a vacinação pela iniciativa privada criará um sistema de multiplicidade de filas e, logo, repartição de tarefas e aumento da velocidade da vacinação de todos. Isso acelerará o processo e retirará da fila do sistema público grande quantidade de brasileiros, boa parte não de “ricos”, mas de seus funcionários. E, convenhamos, os “ricos” também são brasileiros, não sendo razoável que sejam discriminados por terem tal condição já que a Constituição permite a iniciativa privada, com seus riscos e bônus.

Neste contexto, cabe destacar a decisão do desembargador Rolando Valcir Spanholo que, provocado recentemente a decidir sobre o tema por uma entidade de direito privado, concluiu que não há impedimento legal de a sociedade civil participar imediatamente do processo de imunização da população brasileira em relação à pandemia da COVID-19.

Quando a iniciativa privada é autorizada a adquirir vacinas, não estamos diante de um reforço à desigualdade social, mas sim de menos pessoas na fila dependendo do governo. Não se “fura a fila” do SUS: se “diminui a fila do SUS”. Mais que isso, cada pessoa que recebe a imunização é uma a menos para ser infectada e eventual transmissora dessa terrível doença. Desta forma, será possível impactar de forma positiva a economia como um todo, permitindo o custeio do próprio cidadão que tiver condições de arcar com a proteção de sua família e de seus empregados, acelerando o ritmo da retomada econômica tão necessária para que os setores público e privado possam voltar à normalidade.

Entretanto, algumas considerações, sob o ponto de vista constitucional, merecem ser feitas. É inegável a louvável intenção legislativa contida no artigo 2º da lei que 1) determina a doação integral de vacinas adquiridas ao SUS enquanto não vacinados os grupos prioritários pelo Poder Público e, em um segundo momento, após o término da vacinação daqueles grupos; e 2) que as pessoas jurídicas de direito privado poderão comprar as vacinas, devendo, contudo, doar metade das doses compradas para o SUS, sendo que outra metade poderá ser livremente distribuída e aplicada, mas desde que isso seja feito de forma gratuita (a pessoa jurídica não poderá vender as vacinas).

A previsão legal, embora altruísta, cria, em verdade, uma desapropriação indireta pela via transversa sem observar o direito de indenização garantido no artigo 5º, XXIV, da Constituição Federal. Assim como saúde, educação e segurança são deveres do Estado e direito dos cidadãos, a vacina também é. No entanto, não há qualquer empecilho ao setor privado e a qualquer cidadão de optar pelos planos de saúde, escolas particulares e serviços profissionais de segurança. Aliás, a própria Constituição Federal em seu art.199 diz que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada. Ao mesmo tempo, é legítimo ao cidadão defender a sua saúde e a de seus familiares e funcionários. Não é razoável impor às pessoas que eventualmente possam obter de forma privada as vacinas uma submissão forçada à nem sempre ideal velocidade estatal de ação. Não fosse assim, também não poderíamos ter hospitais privados nem planos de saúde privados. Mais uma vez: isso nunca foi questionado e seria um absurdo ideologizar o tema justamente em momento no qual não podemos desperdiçar nenhum vetor que contribua para vencer a pandemia.

Inexiste, então, motivo razoável que obrigue o particular a doar vacinas que são dever do Estado providenciar. Isto seria de fato usurpação inconstitucional de propriedade privada sem a observância dos requisitos constitucionais, o que seria figura assemelhada ou novo tributo com efeito de confisco, o que é vedado no artigo 150 da Constituição, mas não impede que doações privadas para o SUS possam ser realizadas por todos aqueles que puderem.

Para além disso, é fundamental destacar que para parte das vacinas, a hipótese de compra pelo setor privado se mostra mais factível. Como é sabido, há fundos de investimento que bancaram as pesquisas e têm direito a cotas de vacinas que são mais rapidamente acessíveis pelo setor privado. Se a agilidade dos empresários brasileiros pode trazer essas doses mais rapidamente para o país, como abrir mão disso num momento tão difícil? Os empresários são mais céleres até por não terem as limitações de preço nem as fiscalizações naturais de órgãos de controle como Ministério Público, CGU, Tribunais de Contas e, até mesmo, por não terem o risco de, a cada passo, serem eventualmente acusados de improbidade administrativa.

Vale mencionar o caso das máscaras que, deixadas por conta da iniciativa privada, em pouco tempo inundaram o país. Imaginem se apenas o SUS pudesse produzir e fornecer as máscaras? Enfim, o país tem que perder o medo de utilizar as habilidades da iniciativa privada para que sejam alcançados os mais altos objetivos públicos. Tais medidas certamente poderão abreviar em muito o tempo de fila e reduzir drasticamente o volume de vítimas dessa cruel pandemia, além de trazer o Brasil para a normalidade. Portanto, neste breve artigo, como professor de Direito Constitucional e como cidadão, faço votos que seja facultado à iniciativa privada adquirir, trazer e aplicar as vacinas aprovadas pela Anvisa.

William Douglas é desembargador federal

 

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