Como a Estônia construiu uma sociedade digital
No país, apenas três serviços exigem a presença física de um cidadão em uma instituição do governo: casamento, divórcio e transferência de imóvel
Pequeno país à beira do Mar Báltico, no nordeste da Europa, a Estônia é referência atualmente em administração pública digital. No país, apenas três serviços exigem a presença física de um cidadão em uma instituição do governo: casamento, divórcio e transferência de imóvel. Tudo o que sobra — de abertura de empresas à votação nas eleições presidenciais — é possível ser feito sem nenhum deslocamento ou papel, apenas com assinatura digital. Dos 1,3 milhão de estonianos, 98,2% possuem RG digital, com um chip que lhes garante acesso a mais 500 serviços do governo.
A história por trás da construção de uma sociedade digital remonta ao começo dos anos 1990, quando o país deixou de ser dominado pela União Soviética. Naquela época, a diferença de qualidade de vida na comparação com seus vizinhos era gritante. “Nosso PIB per capita era de US$ 2,8 mil, oito vezes menor do que o da Finlândia. A gente acompanhava na televisão como eles estavam vivendo. E o que eles tinham de grande? A Nokia. Nós ainda estávamos no telefone fixo de girar”, diz Ilves.
O debate sobre as reformas passou por privatizações, uma nova moeda e ações econômicas. Em paralelo, a Estônia tomou medidas para entrar no mundo HTTP e se posicionar — assim como qualquer outro país do mundo precisava naquele momento — na recém-criada internet. “Nosso grande insight foi que, quando saiu o Mosaic, o primeiro navegador, nós já criamos um programa para conectar online todas as escolas do país”.
Ao menos neste jogo, o pequeno país, frio e agrário, queria estar em pé de igualdade. Foram construídos laboratórios e a infraestrutura necessária para levar a internet até as aldeias mais distantes. Hoje, 88% das pessoas do país têm acesso à web.
Outro passo, mais adiante, foi tornar atrativo o investimento privado em infraestrutura digital. “Na maior parte dos países europeus, o RG digital é voluntário, o que faz com que seu uso fique em torno de 25%. Isso não atrai investimentos. Foi por esta razão que, em 2000, aprovamos uma lei que iguala o valor de uma assinatura digital à física”. A lei estimulou a adesão dos cidadãos e os bancos a investir em sistemas de transações mais seguros e digitais. Atualmente, segundo o ex-presidente, 50% dos sistemas de autenticação da infraestrutura do e-government (termo em inglês para governo eletrônico) são bancados pela iniciativa privada.
A infraestrutura digital dos serviços públicos ainda é a mesma de 17 anos atrás, segundo Ilves. Trata-se de um sistema open source, não proprietário e descentralizado. Se uma empresa particular desenvolver um novo serviço, basta acoplá-lo a essa infraestrutura. Dentro dela, os dados das agências, instituições e governo circulam de forma criptografada, de ponta a ponta. “Quando uma criança nasce, um hospital já envia automaticamente os dados para outras instituições da rede. Quando a polícia para um cidadão por alta velocidade, consegue acessar na hora todas as informações dele”.
A segurança do sistema, segundo Ilves, está principalmente na dupla autenticação que é exigida do cidadão para acessar algum serviço — feita por meio de uma combinação de números e do chip presente no RG digital. O país não usa sistemas que incluam login e senha, tampouco SMS. O ex-presidente diz que todos os cidadãos confiam na infraestrutura atual — chamada de X-Road -— principalmente porque ela nunca foi “hackeada”. Na Estônia, cerca de um terço da população vota online e é possível abrir uma empresa em apenas quinze minutos, além de renovar a receita do médico de forma totalmente digital. “No nosso país, vigora aquilo que chamamos de once only rule: você só precisa dar uma informação para o governo uma vez na vida. É por esta razão que hoje os estonianos simplesmente odeiam qualquer tipo de burocracia”.
O processo de desenvolvimento do e-government também incluiu a criação de “um arcabouço jurídico” que desse sustentação às regulamentações, padrões e transferência de informações entre os órgãos públicos. Segundo Ilves, o país realiza treinamentos períodicos com representantes do Poder Judiciário para atualizá-los sobre Direito Digital. O ex-presidente defendeu na palestra que “mais do que tecnologia” é “preciso ter vontade política” para a criação de uma sociedade digital. “Tivemos ministros que levaram essa agenda adiante, por todos esses anos, garantindo continuidade. É uma ação que precisa vir do topo”.
Finlândia, México, Panamá e Uruguai são alguns dos países que trabalham diretamente com a Estônia, para criar seus próprios e-governments. O Uruguai, aliás, é o mais avançado na América Latina quando se fala em administração pública digital, segundo ranking divulgado pela ONU no dia 9 de julho.
O país iniciou sua agenda digital em 2008, na presidência de Tabaré Vázquez. Em dez anos, o acesso à internet no país ultrapassou 70% de penetração — 99% das escolas e hospitais foram conectados, segundo José Clastornik, diretor da Agencia de Gobierno Electrónico y Sociedad de la Información y del Conocimiento do Uruguai. Com isso, foi possível implementar o programa “Um LapTop por criança” no país.
Em palestra no GovTech, Clastornik contou que a meta para 2020 é que toda a população do país com mais de 18 anos tenha carteira de identidade digital. Atualmente, 100% dos serviços do governo podem ser iniciados online e cerca 80% deles podem ser concluídos sem a presença física do cidadão. A meta é alcançar 100% em dois anos. Segundo Clastornik, é possível realizar tudo de forma digital — com exceção de casamento e divórcio.
As metas que o país discute hoje fazem parte da agenda criada para 2020, que inclui também melhorar a segurança do sistema e analisar os dados recolhidos para implementar estratégias nacionais.