As lições da quebra da FTX (e por que isso não tem nada a ver com cripto)
O que ocorreu com a FTX, que adota o modelo faroeste de tantas outras “exchanges pontocom” que passaram a explorar a ineficiência dos reguladores brasileiros nos últimos anos, foi a dispensa de cuidados básicos de governança
Símbolo do FTT, token da TFX
O Bitcoin não quebrou. E Satoshi Nakamoto continua sendo a pessoa mais confiável do mercado financeiro e de capitais.
Enquanto isso, os projetos e pessoas comuns continuam a nos decepcionar. Dessa vez, Sam Bankman-Fried (SBF), CEO e fundador da FTX, e Changpeng Zhao (CZ), da Binance, que em um joguinho de traders e más práticas de gestão, colocaram o ecossistema cripto em xeque.
A FTX, do SBF, tida como a grande concorrente à Binance, de CZ, acaba de quebrar. Em 11 de novembro de 2022, anunciou que entrou com pedido de Chapter 11 nos EUA, com direito à renúncia do seu CEO e fundador
Um rombo estimado entre US$ 10 bilhões e US$ 50 bilhões. E, ao que parece, podendo carregar outras empresas dentro da mesma espiral, uma vez que a prática de alavancagem é comum às plataformas que se dizem “sem sede”.
Todavia, isso não tem nada a ver com cripto. Explico.
Qualquer plataforma que lida com bens de terceiros, seja um estacionamento, um banco, ou uma exchange, tem o dever de devolver os mesmos bens quando o cliente os requisita.
Para isso, a não ser que tenha autorização legal ou contratual expressa e controles adequados de margem e de riscos, não pode negociar nem colocar em garantia de suas próprias operações os ativos dos usuários.
Não é diferente com cripto. Uma plataforma de negociação centralizada existe por dois motivos: um, para facilitar o ingresso de pessoas na web3, sem que essas tenham que entender profundamente as características das tecnologias lá negociadas. E dois, para guardar os ativos enquanto os clientes decidem se querem mantê-los ou comercializá-los em alguma janela de oportunidade.
O que ocorreu com a FTX, que adota o modelo faroeste de tantas outras “exchanges pontocom” que passaram a explorar a ineficiência dos reguladores brasileiros nos últimos anos, foi a dispensa daqueles cuidados.
Os ativos dos clientes foram utilizados pela empresa para cobrir gastos próprios, como operações de arbitragem e investimentos em ativos de risco, para pagar campanhas e patrocínios, para bancar lobbies e relações com agentes ligados a governos.
Se a intenção não fosse, pura e simplesmente, executar uma fraude, a expectativa era que essas “apostas” trouxessem resultado antes que os clientes pedissem de volta os seus recursos.
A descoberta de furo no balanço da Alameda (braço da FTX com sede nos EUA), seguida do ataque especulativo promovido por CZ (que provocou a queda da FTT, token da própria FTX, relevante em seu balanço), levaram a uma corrida bancária e à consequente quebra da empresa.
Era quase tão óbvio que isso ocorreria quanto parece ser que a Binance enfrentará graves problemas com a Justiça. Inclusive aqui está um ponto que pode ter atiçado o CZ a atacar seu concorrente, pois SBF havia recém-publicado um post zombando da impossibilidade de o chinês pisar nos EUA, sob pena de ser preso.
Neste sentido, os principais veículos globais (como Reuters e Forbes) e até brasileiros (como Folha de S. Paulo e O Globo), já trouxeram informações que colocam a exchange chinesa como um dos principais hubs de lavagem de dinheiro no mundo, inclusive com operações de células terroristas e com países sancionados.
Assim como aconteceu com SBF, muita gente ainda vai pagar para ver.
Um dos motivos é o encantamento por personalidades carismáticas, que convencem até mesmo experientes analistas. Outro é o efeito de ações puramente marqueteiras, como a conexão com grandes nomes locais.
No Brasil, Henrique Meirelles acaba de emprestar seu nome à Binance, depois que essa enfrentou problemas com o Banco Central, no conflito com Meliuz/Bankly e Capitual.
O mais novo golpe de marketing é o “proof of reserve”, uma mentira que enganará consumidores ingênuos por algum tempo. Veja bem: a FTX tinha mais de US$ 30 bilhões de ativos antes da quebra.
E, mesmo comprovando a existência, quebrou. Por um simples fato: suas obrigações com clientes e com outras contrapartes superavam (e muito) aquele montante.
Essas obrigações são praticamente impossíveis de comprovar, porque não estão no blockchain, como as wallets que mantém as reservas em cripto. A FTX, por exemplo, emprestou alguns bilhões de dólares a sua coirmã Alameda, numa operação carregada de conflitos de interesses que ninguém teria conhecido antes da quebra.
Embora o Bitcoin tenha trazido para a humanidade um sistema digital baseado na inovadora solução de confiança de transações, o mesmo não se aplica a quem presta serviços no seu entorno.
Aqui, tudo continua como antes: empresas confiáveis são aquelas que tem local estabelecido, administradores com track record e governança validada por órgão internos, auditorias externas e fiscalização por reguladores.
No Brasil, o MB (Mercado Bitcoin) segue este princípio e, junto com outras exchanges sérias, têm lutado na ABCripto (Associação Brasileira de Criptoeconomia), para aprovação de um marco legal, bem como, para educar o mercado sobre os riscos escondidos em plataformas piratas que praticam a arbitragem regulatória para fugir das obrigações legais.
Que essa dolorosa lição seja a última para todos nós.
Reinaldo Rabelo é CEO do Mercado Bitcoin